quinta-feira, outubro 15, 2009

Frutos


Sabes-me ao doce-doce-amargo das romãs, o carmesim intenso nas faces das manhãs geladas, o vermelho que escorre, inevitável em rios de doçura nas mãos deixando a sua marca. Seremos o fruto e as mãos no Outono que desliza até à morte, seremos na pele e nas mãos o vermelho-vivo de ser tudo, o vermelho-forte das coisas que permanecem, doce-doce- amargas num mundo em que nada permanece nem nada é senão em pequenos lampejos de luz branca-forte, vermelha-viva, como as romãs.

terça-feira, outubro 06, 2009

Samhain


Entre o véu dos vivos e dos mortos, de todas as legiões de fantasmas e monstros, a fina, ténue linha do nosso silêncio. Comungamo-nos as longas noites e a escuridão primitiva de todas as coisas secretas que ninguém sabe, todos os gestos inúteis, todas as esperas, comungamo-nos inteiros, entre vivos e mortos e terrores de noites escuras. Devoramo-nos entre a celebração das coisas, vivas, que começam em novos círculos eternos e tudo o que foi antes de nós e é morto e está escondido, mas presente, apesar de tudo, entre as nossas linhas de silêncio.

quinta-feira, outubro 01, 2009

Sonata de Outono




Ressoa, ao nosso redor, o silêncio fecundo e escuro das raízes , a escuridão de todas as coisas que vivem e crescem e são muitas, constantemente em mudança. Somos na noite como quem hiberna, somos na noite como quem se firma na terra e se alimenta e cresce entre todas as escuridões fecundas, somos na noite como o que se não vê em círculo de coisas que acabam e coisas que começam sempre, incontroláveis. Seremos os dois assim, raízes envoltas em silêncios, quando o mundo morre e explode à nossa volta em cacofonias de vermelhos e amarelos e laranjas finais, dormimos envoltos em vida. E ressurgiremos na luz, frágeis, ternos,finitos, como todas as coisas que nascem e florescem.

quarta-feira, setembro 30, 2009

Sonata de Verão


Amar-nos-emos como o silêncio marítimo dos dias de sol e dos faróis silenciosos, com todos os limites imperfeitos dos contornos da vida. Haverá sempre um riso contrariado, uma camisola esquecida, uma palmeira chicoteada pelo vento salgado da beira-mar, um gesto doloroso que nos fere sem pensar. Juntos somos um feixe apertado, perto demais para o conforto, às vezes, juntos somos os faróis em silêncio porque não avisamos o resto da humanidade para nos passar ao lado. Causaremos naufrágios um no outro, desgraças épicas de chuva como chicotes, causaremos tempestades selvagens e fúrias. Noutros tempos seremos outras coisas: as manhãs de silêncio e sal com o zumbir de insectos secretos, os dias agridoces de mãos dadas e camisolas esquecidas e pequenas contrariedades. Juntos somos um feixe, deus, um feixe tão apertado. Amar-nos-emos até aos limites mais remotos do silêncio.

segunda-feira, setembro 28, 2009

Ecos


Entre o que dizemos um ao outro há desfiladeiros de silêncio, habitados de estranhas, frágeis criaturas, com nomes demasiado dolorosos ou demasiado definitivos para se repetirem. Que diremos um ao outro que não as espantem, recolhidas em cantos dolorosos, que lhe diremos senão este quotidiano em que nada é grave ou importante ou definido, que nos diremos senão este espaço onde ainda tapamos os olhos para não as ver, estas estranhas criaturas definitivas que, se as chamarmos nos devorarão inteiros?

segunda-feira, julho 13, 2009

Objectos XIV



Não joguemos os jogos da culpa de dos desgostos, hoje não, mais não. Tirando a familiaridade, que mais haverá, que bom sairá disto tudo? Sabemos, sabemos tão bem o que temos, as peças caídas e impossíveis de mexer sem fazer cair o mundo sobre nós, as pecas contadas e recontadas: não há, não pode haver vencedores.
Quisera a perícia de continuar, mas não mais, não quero mais. Nem pena nem hesitações nem ramos verdes de oliveiras em pombas, antes deixar que tudo se inunde e mais não seja, antes desviar-me da via dolorosa deste jogo cruel. Chega.
Tenho desviado, com cuidados de Atlas com o mundo às costas, todas estas cadeias intrincadas, todos este nós, mas não há mais energia, nem para o ódio, nem para a raiva, nem para a esperança, nem para o amor. Só o hábito mantém as peças agregadas, só o saber de cor o que acontece a seguir me mantém de olhos fixos na mesa, concentrada. Mas sabemos os dois como não vale a pena.
Eu sei como o amor, o meu amor funciona com os avanços e recuos das marés, mas tem de acabar, tem de ter um ponto final. Ah, não mais fragilidades, não mais pontos fracos que me deixam estúpida e fraca, que me deixam ruínas para reconstruir, não mais. Das peças de Mikado cheguemos ao consenso do impasse, não ganho, não ganhas, nenhum poderá dizer que sai incólume. Mas mais jogos de culpa e desgostos, de redes de segurança não. Basta.

domingo, junho 28, 2009

As virtudes


Quando as esperanças são estiletes, finos, cruéis estiletes a acariciar-nos a pele, como manter em nós a fé, como continuar? Quando nos fere como a água os sedentos, como a pena aos orgulhosos? Antes a libertação de não ter, querer ou esperar nada, a libertação de não ter corações ou âncoras a segurar-nos ao mundo dos outros. Antes a libertação de não esperar mais.