segunda-feira, outubro 30, 2006

Mad Hatter


Perdi, com o tempo e as esperas, a cabeça. Alterei os calendários e as horas para ser sempre horas de estar aqui, de estar contigo e apenas me restou as chávenas vazias e o fantasma do teu toque onde não estás mais.A minha vida toda como a Alice no chapeleiro, em círculos, pressentindo a tua presença, esperando-te. Nada acontecerá aqui, no país das maravilhas que é só onde estamos os dois, nada a não ser este teu vago sabor nos meus lábios, nos objectos que tocaste e eu toco depois de ti. Ah, poderás tu trazer-me deste tempo circular onde não estás nunca, poderás tu trazer-me para o presente deste lugar secreto onde estamos juntos, deste lugar secreto onde me escondo e que não existe?

quinta-feira, outubro 19, 2006

Centopeia


Quantas vezes podes tocar-me sem que me dobre e me feche como uma bola de pés e mãos, escondida, impenetrável? Fecho-me assim, como uma porta, um cofre. Aqui não me podes tocar, não me podes tocar mais.

Com o tempo ficamos assim, cheios de defesas e de muros, sem pontes levadiças. Com o tempo ganhamos defesas e dentes, picos, fechamo-nos ao toque em novelos, com o tempo aprendemos a secar as lágrimas e andar, apanhar os cacos do que sobrou e colá-los, definitivos. Ficamos inquebráveis. Com o tempo já nem a memória da carne vulnerável temos, todas as coisas se apagam que não sejam os picos e os pés, cresceram-me mil pés de fuga, cresceram-me aneis em espiral de rosa fechada de defesa.

Enrolo-me em bola impenetrável. Só transparece no escuro o fluorescente amargo da solidão fechada em círculo duro de âmbar, o fluorescente cítrico de todas as saídas de emergência que inventamos para nós mesmos.

quarta-feira, outubro 11, 2006

Laura


Deste-me a eternidade em todas aquelas que me seguiram: para todas tenho a dimensão dos bichos papões e das coisas sombrias, o ídolo de pedra a derrubar, lembrança de tempos que ficam melhor esquecidos, enterrados debaixo dos lençóis quentinhos, a dimensão do pânico nocturno de sombras ameaçadoras.Chegam até a mim pelos tus caminhos, saltam o muro onde puseste o letreiro a letras gordas: proibido, sabias que o fariam. Viveria sem ti nos meus dias, perfeitamente, não fosse essa tua mudez teimosa de coisa definitiva que as traz até mim, tentando encontrar menos, ou mais, tentando encontrar as tuas razões secretas para as recusas.Desaponto-as, eu sei, nada de santas ou martírios aqui, apenas o arrastar de um longo não, de um compridíssimo nunca mais que se estende como o teu muro de indisponibilidade, não há nada em mim que lhes possa justificar a minha dimensão de totem, de símbolo ameaçador das coisas que não podem ser. Estou barricada pelas presenças que me prescutam, que me catalogam, obrigada a construir-me em recusas e partidas, mesmo depois de ter partido, de ter perdido. O facto de não estares comigo é só um pormenor ínfimo, um pequeno acidente de percurso. Saberão elas que, também para mim havia sombras e muros e o letreiro a letras gordas a proibir mais do que prometia? Saberão a minha dimensão polida e redonda de conta de rosário, com mais atrás e mais à minha frente, a minha secreta, mas verdadeira humilhação de não ser especial, definitiva?Deste-me a dimensão de sombra vampírica a todas as que me seguiram, nunca perceberei porquê. E estou tão cansada, tão cansada de muros em recusa, de viver em adeus para conseguir um pouco de paz. Não haverá paz para mim de capítulo fechado, nunca o permitirás. E em nome de quê? Dos teus próprios fantasmas, se calhar. Estou tão farta de te servir de escudo, de te servir de arma, de te servir de desculpa, não quero a eternidade que me dás. Também o nosso amor foi finito e imperfeito, cheio de silêncios e desculpas, também para mim havia terrores nocturnos e bichos papões, também eu me agarrei ao sono que não chegava, rodeada de sombras por todos os lados. Também, nos tempos que te amava, havia para mim outras presenças.A única coisa que desejaria era a paz do ponto final, a paz da vida que se segue sem ti. Nunca me quis eterna. E no entanto, aqui estou. Vivo em ti nas mentes das que estão contigo, umas após outras. Quando perceberás que chega, que não vale mais a pena? Liberta-me para te poderes libertar.

segunda-feira, outubro 09, 2006

Note to self

Ah, como as coisas doem menos se nos rirmos delas, como nada tem importância. Todas as coisas se acabam assim, em farsa, um alívio cómico de todo o pathos, uma piadinha seca e inteligente. Uma volta de inteligência até ao cómico em que as coisas perdem a sua importância. Nada mais te tocará, nada mais poderá fazê-lo, uma bolha de gás ácido de riso e de auto-crítica, uma volta por cima a partir do próprio rabo no chão, o riso da própria dor. Nada mais te poderá tocar assim, nunca nada mais te irá fazer pior que este riso. Nada.