domingo, julho 30, 2006


Cá dentro é fresco e calmo e limpo e arrumado. Lá fora as pessoas andam pela rua quente, as adolescentes, as mulheres gordas decotadas, os velhos e o sol queima tudo, dizem que é o verão mais quente de todos, será. Cá dentro é fresco e o relógio marca os minutos arrastados e as pessoas sussurram e há enfermeiras bem educadas com uniforme e não há passos, só o deslizar das rodas das macas ininterrompido por outro som qualquer. Eu e os outros olhamo-nos calados à espera, entraremos. Esperam que me deite, deite-se se faz favor e eu deito, cruze as mãos no peito se faz favor e eu cruzo, obedeço aqui o que me mandam fazer, encha o peito de ar e eu encho, é tão mais fácil assim quando me mandam em vez de decidir, tão mais fácil. Esperam que entre e eu entrarei e que me deite e depois descerram as cortinas e eu falo e é a minha vida e dizem-me que sim e continue. O corredor está silencioso, é uma colecção de mudos estamos todos à espera que abram as portas e nos chamem e cada um entrará pera sua porta, em que o posso ajudar hoje de que se queixa e toda a gente a obedecer porque lá fora está calor e aqui dentro todos calados e foi para isso mesmo que aqui viemos. Então eu falo e falo e atrás de mim escrevem com uma caneta silenciosa só ouço o desfolhar das folhas e eu respiro muito e encho o peito de ar porque me mandaram. Lá fora estão ainda muitos, todos mudos a ouvir as rodas das macas que chegam e eu estou deitada na penumbra, deite-se se faz favoe e esteja à vontade e eu estou, falo coisas nem sei bem o que digo é só para quebrar o silêncio-em-rama deste gabinete, então de que se queixa em que posso ajudá-lo e eu falo e falo e falo. Estranho o som das minhas palavras como se me tivesse esquecido delas e se calhar esqueci, se calhar esta é a minha voz diferente, a da minha voz aqui dentro onde não há som e as enfermeiras são competentes e nos poisam mãos tranquilizadoras sobre as veias quando nos picam e nos servem um sorriso com o comprimido do sono. Se calhar nunca falei assim a não ser aqui onde me mandam deitar e não precido de ser ou pensar nada, deite-se se faz favor, respire, sim, assim está bem, não se mexa é só uma picada. Espero, chamar-me-ão para entrar e entrarei e falo é sempre assim não muda o ritual, ou tiram sangue as enfermeiras, entre e deixe-me ver como está tudo e eu deixo.
Lá fora está calor e é um verão quente e há vestidos frescos e sandálias e crianças e posters e música e os comboios cheios à hora de ponta mas aqui dentro não. Aqui somos uma colecção de mudos, entre se faz favor e todos à espera do nosso nome e entramos. Chamam por mim agora. É hora.

quinta-feira, julho 20, 2006


Recolhe-me como uma coisa perdida e guarda-me num canto do teu corpo, recolhe-me como uma coisa perdida e guarda-me no teu bolso distraído, leva-me esquecida contigo aonde fores. Que longo e que sombrio é o caminho da vida assim, sem escorrer pelos teus dedos distraídos e os teus olhos ligeiramente vagos a tentar definir o que sou, inesperada no teu caminho.
Viveria melhor sem esta ânsia de que me encontres. Viveria em paz. Mas faz-me sempre falta o ir contigo distraído, faz-me sempre ânsia um recanto pequeno que te pertença e onde esteja. É longo o caminho e sombrio este da vida, ainda mais sem o teu olhar, ando tão bem sozinha, era tão mais fácil a minha vida sem esta ânsia e no entanto sempre a vontade que me recolhas como uma coisa perdida e me guardes, distraído no teu bolso, a ânsia de estar contigo onde fores como uma coisa pequena e esquecida no fundo da tua mente, mas presente.