quinta-feira, agosto 16, 2007

Radiografia


Está sol lá fora e a mulher mede-me por todos os lados. Ultimamente a paranóia deixa-me ver assim estas coisas de sombras em todo lado, mesmo onde eu sei que não há sombras. Porque não entra por aqui, pede-me, porque não passa e é só um minuto, tire a roupa, sim, tire a roupa. Fico ali encostada como se fosse uma coisa qualquer, como se conversasse ou comesse madalenas, se estivesse numa literária. Ah, mas vem alguém. Respire. E sobre a minha pele gelada o metal e o vidro e alguém me vê por dentro alguém me mede. Se encontrarem o coração por aí dentro, mandem-no para casa. Há meses que anda perdido e, mesmo não me tendo feito grande falta é sempre um adereço bom para se usar, um daqueles toques que, parecendo que não, dá outro ar. Se o virem aí dentro, mandem-no para casa.

segunda-feira, agosto 06, 2007

Arqueologia


Emergem à superfície os bocados dos gestos do passado, das memórias, em forma de detritos e de pedaços desconexos. Vestígios. Do presente, do tempo que agora é fica a estranheza perplexa das coisas que se perderam e se partiram presentes naqueles bocados, a tristeza vaga de uma certa noção de finitude. Nada permaneceu. E de certa maneira, tudo foi melhor assim, ninguém conseguiria então olhar para o presente, prever o destino das estradas que nos conduziram até aqui. O que se reconstruir daquilo será fechado em caixas e catalogado, longe das mãos que o tocaram, o que se reconstruir será objecto estranho e preso ao seu tempo, não contará. Poderemos, talvez, olhar com uma saudade, mais pressentida que sentida, das coisas que então foram, mas não voltará a ser presente. Estamos presos, estanques, no tempo que somos e nos espaços que somos. Vivemos sem a falta do que se perdeu, vivemos sempre. Dos passos que nos precederam e dos gestos em camadas sucessivas só sentimos a vertigem de olhar para baixo e para muito fundo. Nada reerguerá nada, nada o poderia fazer. Vivemos sempre melhor em frente e sem a noção de história. É mais fácil.