terça-feira, maio 27, 2008

A criança imaginária


Foto: Loretta Lux(Dorothea)
Dela se dirá do olhar, do silêncio. Dela se dirá da expressão de quem vê as coisas de um ângulo próprio, como as abelhas ou outros bichos pequenos a cujas asas são arrancadas pelas crianças cruéis. Dela se dirá de tudo, do azul e do branco, do rosa claro e das improbabilidades: crescer é uma actividade antitética. Dela se dirá que os olhos e a liberdade são do pai, que as mãos e as horas amargas são da mãe. Na verdade, aquilo que é permanecerá nas memórias próprias de dias muito longos e muito quentes, fechado por detrás dos seus olhos enigmáticos como uma carta fechada, o último dos selos místicos, porque inquebrantável.

segunda-feira, maio 19, 2008

Personagens imaginadas: o Príncipe Sapo

Boy who loves water,Maggie Taylor

Porque não admites sabes, sabemos, conhecemos o vazio por detrás de tudo, nem o teu valor é mais que esse, o de cumprir e seres,milimetricamente, aquilo que se pede, és como deves ser com os teus pés de monstro aquático e os teus olhos muito abertos, porque não o admites, entre todos os deveres essa certeza de não sentires nada, de não seres nada, de não conseguires ser nada, a tua vida é os momentos em que finges ser como todos, a tua vida é toda a falha secreta de não o conseguires ser, mas continuas como se fosses, somos imperfeitos e por detrás de tudo nunca conseguirás ir para lá desse vazio.

domingo, maio 11, 2008

O Cemitério de objectos

As coisas que se perdem, as coisas que já não servem, que fazemos delas? Talvez se acumulem os detritos à nossa volta até ficarmos paralisados pelo que não servirá, talvez os mandemos para longe, talvez, talvez desapareçam por si, como vestigios de outro tempo: só mais tarde, outros que não nós os encontrarão e nos reconstirão através do que já não queremos, com cuidados de catalogador, com os gestos delicados, distantes dos arqueólogos.
As coisas que não queremos e não nos servem, que só podem ser trazidas de volta nas vozes artificiais de médiuns por breves momentos, sepultemo-las. Do fim delas nada mais virá, nenhuns princípios, a não ser o da paz, nenhuns ganhos, a não ser a da sabedoria da finitude: as coisas são frágeis, algumas demasiado delicadas, demasiado cheias de falhas para durarem muito, enterremo-las e partamos, as coisas que não nos servem afastêmo-nos delas.

terça-feira, maio 06, 2008

Objectos(VII)


Há todo o tipo de golpes, o esperados, há todo tipo de golpes, um dia estamos muito bem e depois é como se nunca mais conseguissemos parar a hemorragia, tudo, tudo, tudo sai para fora de nós e nunca mais volta a ser, os gentis e generosos que arrastam e doem mais, há todo tipo de golpes, os que cortam o que está a mais como o amor, sim, como ele. Há todo tipo de golpes, como os temidos, como os obviamente esperados que sofremos antes de estarem na pele, os da cruzinha no calendário, menos um dia, e outro, que sofremos às prestações, todos os dias mais um bocadinho e depois, olha, lá chega, há os raivosos que são à traição e os que não podemos mostrar, guardar a dor para nós como um segredo feio, olha, estava num sítio onde não devia estar e depois não quero dizer o que foi, olha, estava ali mas como fui estúpida, deus, como fui estúpida mas não posso dizer nada, aumentar a mortificação, ensinaram-me todo tipo de golpes. E como ficou a lição na carne, funda...