quinta-feira, setembro 25, 2008

Objectos(VIII)


"How do you say goodbye to someone you can't imagine living without? I didn't say goodbye. [pause] I didn't say anything. I just walked away. "
My Blueberry nights

Há vezes em que a memória me prega partidas dolorosas e me esqueço de como as coisas são, de como têm de ser, e deslizo para a tão familiar, tão confortável ânsia, para a saudade. Para me curar tenho de recordar-me com mais força, com mais determinação de todos os lugares, todos os pontos da via-sacra que me doeram como cortes, como golpes casuais em dor e espanto. Aqui, recordo, o coração foi-me posto outra vez nas mãos, casual, gentil, descuidadamente. Ali era o lugar de todos os adeuses e ausências, de todas as horas solitárias em que amava sem palavras, além andei sem rumo e sem causa, embatendo nas paredes e nas impossibilidades , mais à frente me deram lições do meu próprio ridículo, lições deliberadas e claras, lições de como não servia nem podia ser. Regresso lá sem penas ou remorsos ou raivas. Cansa demais. Nenhum passo atrás poderá ser dado, nenhum caminho retraçado de formas diferentes, melhores, mais completas. Regresso a todos os lugares que estive para lembrar, para não deixar que a sépia das memórias e das ausências dilua ou apague os pormenores, faça esquecer as dores e as raivas e as lições, tão infinitamente importantes, que me moldaram no que sei hoje. Permito-me, uma vez por outra, um pouco de sentimentalidade. Como direi, uma lágrima é uma lágrima, uma lágrima, uma lágrima, uma lágrima, àgua e sal. Mas o mapa de todos os sítios, tatuado na pele, lança sombras longe, guia-me para fora dos buracos em que só uma coisa tão cega como a nostalgia, como a saudade, me lança.

sábado, junho 21, 2008

In the mood for love


Emparedamos os segredos, nenhum mais importante que este: a fragilidade. As coisas que temos, que guardámos entre nós e não têm nome são como fios que se puxam ao limite e se quebram, que se acabam e vemos através das lentes turvas das lágrimas, da memórias. Deixamo-las para trás, como aves, como corações pulsantes fechados na pedra. E o belo que foram não será de novo.

terça-feira, maio 27, 2008

A criança imaginária


Foto: Loretta Lux(Dorothea)
Dela se dirá do olhar, do silêncio. Dela se dirá da expressão de quem vê as coisas de um ângulo próprio, como as abelhas ou outros bichos pequenos a cujas asas são arrancadas pelas crianças cruéis. Dela se dirá de tudo, do azul e do branco, do rosa claro e das improbabilidades: crescer é uma actividade antitética. Dela se dirá que os olhos e a liberdade são do pai, que as mãos e as horas amargas são da mãe. Na verdade, aquilo que é permanecerá nas memórias próprias de dias muito longos e muito quentes, fechado por detrás dos seus olhos enigmáticos como uma carta fechada, o último dos selos místicos, porque inquebrantável.

segunda-feira, maio 19, 2008

Personagens imaginadas: o Príncipe Sapo

Boy who loves water,Maggie Taylor

Porque não admites sabes, sabemos, conhecemos o vazio por detrás de tudo, nem o teu valor é mais que esse, o de cumprir e seres,milimetricamente, aquilo que se pede, és como deves ser com os teus pés de monstro aquático e os teus olhos muito abertos, porque não o admites, entre todos os deveres essa certeza de não sentires nada, de não seres nada, de não conseguires ser nada, a tua vida é os momentos em que finges ser como todos, a tua vida é toda a falha secreta de não o conseguires ser, mas continuas como se fosses, somos imperfeitos e por detrás de tudo nunca conseguirás ir para lá desse vazio.

domingo, maio 11, 2008

O Cemitério de objectos

As coisas que se perdem, as coisas que já não servem, que fazemos delas? Talvez se acumulem os detritos à nossa volta até ficarmos paralisados pelo que não servirá, talvez os mandemos para longe, talvez, talvez desapareçam por si, como vestigios de outro tempo: só mais tarde, outros que não nós os encontrarão e nos reconstirão através do que já não queremos, com cuidados de catalogador, com os gestos delicados, distantes dos arqueólogos.
As coisas que não queremos e não nos servem, que só podem ser trazidas de volta nas vozes artificiais de médiuns por breves momentos, sepultemo-las. Do fim delas nada mais virá, nenhuns princípios, a não ser o da paz, nenhuns ganhos, a não ser a da sabedoria da finitude: as coisas são frágeis, algumas demasiado delicadas, demasiado cheias de falhas para durarem muito, enterremo-las e partamos, as coisas que não nos servem afastêmo-nos delas.

terça-feira, maio 06, 2008

Objectos(VII)


Há todo o tipo de golpes, o esperados, há todo tipo de golpes, um dia estamos muito bem e depois é como se nunca mais conseguissemos parar a hemorragia, tudo, tudo, tudo sai para fora de nós e nunca mais volta a ser, os gentis e generosos que arrastam e doem mais, há todo tipo de golpes, os que cortam o que está a mais como o amor, sim, como ele. Há todo tipo de golpes, como os temidos, como os obviamente esperados que sofremos antes de estarem na pele, os da cruzinha no calendário, menos um dia, e outro, que sofremos às prestações, todos os dias mais um bocadinho e depois, olha, lá chega, há os raivosos que são à traição e os que não podemos mostrar, guardar a dor para nós como um segredo feio, olha, estava num sítio onde não devia estar e depois não quero dizer o que foi, olha, estava ali mas como fui estúpida, deus, como fui estúpida mas não posso dizer nada, aumentar a mortificação, ensinaram-me todo tipo de golpes. E como ficou a lição na carne, funda...

domingo, abril 27, 2008

Objectos(VI)


Uma vez desencadeadas as coisas têm por hábito seguir os seus caminhos até as ondas nos empurrarem para a frente, se diluirem em ondas inúteis, em esperas.Um corpo permanecerá em repouso ou em movimento rectilíneo uniforme, isto é, com velocidade constante, a menos que alguma força, ou resultante de forças não nula, actue sobre ele. Não há voltar atrás, não há, teria ficado uma eternidade não fosse o que foi, não fossem as coisas serem assim, não há nada contra a inércia como empurrarem-nos para fora, nada contra a inércia como baterem-nos com firmeza para fora dos lugares que ocupamos. Não há nada a resgatar, nada a salvar, vivo para a frente, toda a vida é um balanço, toda a vida estamos à espera do golpe e agora somos em vertigem, em fuga para outro lugar, não há voltar atrás. Se um corpo for actuado por uma força, ou pela resultante de um sistema de forças, ele fica sujeito a uma aceleração. Não se cruzam os caminhos, fujo para a frente e tu para outro lado qualquer, acreditavas mesmo que nada se alteraria, acreditavas mesmo? Fujo para a frente pela força que me empurra, afastamo-nos com a força da luz, com a velocidade do não temos outra escolha. Obedecemos à nossa natureza: fugimos em direcções opostas e nunca mais seremos como éramos: aqui.