terça-feira, junho 20, 2006

Afonso (III)



Chamo-te. Chamo-te vezes sem conta, sempre, mesmo em silêncio a minha mente é um fino fio de som que se estende até ti e te chama, te pede para vires a mim. Sei há muito a futilidade de tudo isto. O melhor da loucura é esta estranha lucidez em que me é muito clara toda a realidade. Á luz dela consigo perceber todas as coisas que passaram até aqui com a satisfação masoquista de perceber todos os passos, todos os gestos do engano. Vejo agora que nunca me amaste, porque a explicação mais simples é a verdadeira. Não quero nenhuma história consoladora, nenhuma meia-verdade fruto da tua piedade, das tuas boas intenções. Acredita, se quiseres, que estou demasiado para lá dos limites da normalidade para querer, ou sequer me importar, com as boas intenções que possas ter comigo, ou com a tua má consciência.

Chamo-te e sei perfeitamente que não virás, que nunca virás. Este chamar-te é um vicio que ficou, um gesto automático de quando ainda te amava e nada estava perdido para mim, quando tudo era ainda possível. Pensarás em mim por vezes, sei-o, com os teus gestos de boas intenções vagas e a pena de ter estado no teu caminho um breve tempo, como uma figura nos arredores do teu campo de visão, meia presssentida. Mas nada nos poderá voltar ao tempo inicial e primeiro em que eramos estranhos um ao outro e tudo era ainda possível.

Chamo-te como quem reza. Na minha confusa, perdida, mente sem fé só o teu nome é uma oração, uma súplica. Morreram-me todos os deuses sem ti, não há misericórdia ou justiça divina agora que te foste, nem sol nem boas intenções nem crianças pequenas que saltam e perseguem pássaros. Há a tua culpa, que não quero, há a tua presença, que não está, há o quarto em que vagueio e gasto os meus dias chamando-te e o desespero que cobre tudo como um finissimo pó de cinzas.

Chamo-te e sei que não virás mas não consigo parar esta súplica que se estende até a ti e toca, invisível o ar que te circunda, os teus cabelos, as tuas sérias mãos, a tua pele e te abraça. Só ela me liga agora a ti. De resto passo os meus dias esquecendo-te. Algum dia será que isso suceda.

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