quarta-feira, setembro 30, 2009

Sonata de Verão


Amar-nos-emos como o silêncio marítimo dos dias de sol e dos faróis silenciosos, com todos os limites imperfeitos dos contornos da vida. Haverá sempre um riso contrariado, uma camisola esquecida, uma palmeira chicoteada pelo vento salgado da beira-mar, um gesto doloroso que nos fere sem pensar. Juntos somos um feixe apertado, perto demais para o conforto, às vezes, juntos somos os faróis em silêncio porque não avisamos o resto da humanidade para nos passar ao lado. Causaremos naufrágios um no outro, desgraças épicas de chuva como chicotes, causaremos tempestades selvagens e fúrias. Noutros tempos seremos outras coisas: as manhãs de silêncio e sal com o zumbir de insectos secretos, os dias agridoces de mãos dadas e camisolas esquecidas e pequenas contrariedades. Juntos somos um feixe, deus, um feixe tão apertado. Amar-nos-emos até aos limites mais remotos do silêncio.

segunda-feira, setembro 28, 2009

Ecos


Entre o que dizemos um ao outro há desfiladeiros de silêncio, habitados de estranhas, frágeis criaturas, com nomes demasiado dolorosos ou demasiado definitivos para se repetirem. Que diremos um ao outro que não as espantem, recolhidas em cantos dolorosos, que lhe diremos senão este quotidiano em que nada é grave ou importante ou definido, que nos diremos senão este espaço onde ainda tapamos os olhos para não as ver, estas estranhas criaturas definitivas que, se as chamarmos nos devorarão inteiros?

segunda-feira, julho 13, 2009

Objectos XIV



Não joguemos os jogos da culpa de dos desgostos, hoje não, mais não. Tirando a familiaridade, que mais haverá, que bom sairá disto tudo? Sabemos, sabemos tão bem o que temos, as peças caídas e impossíveis de mexer sem fazer cair o mundo sobre nós, as pecas contadas e recontadas: não há, não pode haver vencedores.
Quisera a perícia de continuar, mas não mais, não quero mais. Nem pena nem hesitações nem ramos verdes de oliveiras em pombas, antes deixar que tudo se inunde e mais não seja, antes desviar-me da via dolorosa deste jogo cruel. Chega.
Tenho desviado, com cuidados de Atlas com o mundo às costas, todas estas cadeias intrincadas, todos este nós, mas não há mais energia, nem para o ódio, nem para a raiva, nem para a esperança, nem para o amor. Só o hábito mantém as peças agregadas, só o saber de cor o que acontece a seguir me mantém de olhos fixos na mesa, concentrada. Mas sabemos os dois como não vale a pena.
Eu sei como o amor, o meu amor funciona com os avanços e recuos das marés, mas tem de acabar, tem de ter um ponto final. Ah, não mais fragilidades, não mais pontos fracos que me deixam estúpida e fraca, que me deixam ruínas para reconstruir, não mais. Das peças de Mikado cheguemos ao consenso do impasse, não ganho, não ganhas, nenhum poderá dizer que sai incólume. Mas mais jogos de culpa e desgostos, de redes de segurança não. Basta.

domingo, junho 28, 2009

As virtudes


Quando as esperanças são estiletes, finos, cruéis estiletes a acariciar-nos a pele, como manter em nós a fé, como continuar? Quando nos fere como a água os sedentos, como a pena aos orgulhosos? Antes a libertação de não ter, querer ou esperar nada, a libertação de não ter corações ou âncoras a segurar-nos ao mundo dos outros. Antes a libertação de não esperar mais.

terça-feira, abril 21, 2009


Leva-se a vida com passos a subir, em esforço.

sexta-feira, abril 17, 2009




A criança que fui corre ainda pelos bosques negros, tropeçando ainda em todas as pedras, cheia ainda dos terrores inocentes de bichas-de-sete-cabeças e de fados, dos sétimos filhos de sétimos filhos fadados a correr o mundo, transmutados em bichos comuns, porcos, cabras, lobos. Nesse imaginário podemos ainda, contra o mal, usar os talismãs inocentes segredados no recreio, cruzar tesouras à entrada, espalhar sal marinho à nossa volta e batermos na madeira, agarrar com as duas mãos os ramos do domingo de páscoa, a boca em cruz e sangue partilhado dos juramentos, as mãos dadas contra a trovoada e Santa Bárbara em esplendor de cabelhos molhados para fazer chover. É tudo tão simples ainda, para ela, que ainda não caíu na toca do coelho, que ainda conhece todas as certezas de cor e salteado, que ainda pode responder pelo bem e pelo mal e tudo se pode guardar tão simples, como seixos coloridos, penas, flores secas e dentes-de-leão a que se sopravam as delicadas hastes e se viam voar na luz esplendorosa de verões intermináveis.

sábado, março 28, 2009

Intermission

Às vezes não sou melhor que isto, que esta saudade insuportável, esta nostalgia à flor da pele, dolorosamente lenta e doce, até à náusea, até às lágrimas não desejadas, nunca desejadas. Neste intervalo, neste breve intervalo em que me fazes falta, volto de novo àquela tarde de sol e vento e estou de novo onde estava, com o meu coração não solicitado de novo nas mãos estendidas, tão estupidamente vulnerável, tão pouco inteligente, ou sábio ou resistente, frágil. Alguém devia, para minha paz de espírito, banir de vez o grito das gaivotas em tardes de sol, bani-las para que nunca pudesse estar como estou agora, num intervalo entre a vida e as possibilidades não cumpridas. Mais uma vez.