terça-feira, maio 02, 2006



O sinal de nevoeiro do farol ecoava na noite como um chamamento desolado para os barcos que passavam longe. Também em terra estava uma neblina vaga e triste cobrindo a beira-mar. Nos intervalos de silêncio do farol só se ouvia o vago marulhar das marés contra o cais verde de algas. Os habitantes da noite eram todos solitários, ninguém estava à espera de resposta. Um pescador de galochas altas e de cana comprida entretia as horas da noite fria com um cigarro ao canto da boca. A prostituta perto da rotunda da marginal sacudia os pés calçados de saltos altos na tentativa de se aquecer, apertava-se contra o casaco curto que não aquecia nada. Passavam apenas três ou quatro carros por ali àquela hora. Durante o Verão aquela estrada estava cheia de turistas estrangeiros e de adolescentes locais a viver as férias até poderem e a aproveitar o calor, havia barraquinhas de pipocas e de comes-e-bebes e putos a correr para todo o lado, afrouxada a vigilância dos pais. No Inverno era mais a solidão que a companhia, os bares estavam todos fechados até à Primavera, as janelas entaipadas e as portas fechadas a cadeado, dando à marginal o aspecto de uma cidade abandonada como as do velho oeste, só que em vez dos arbustos a voar na poeira havia as palmeiras a chicotearem o ar, a solidão era a mesma.O homem andava pelo passeio húmido com passos cuidadosos e mãos nos bolsos, a cara enterrada no cachecol grosso de lã preta. Não se vê ninguém, pensava, ainda bem, pensava. Combinava com ele aquela solidão das primeiras horas da madrugada, combinava com ele aquele chamamento desolado do farol que não encontrava resposta. E ainda bem que não tinha, pensou. Como as sereias. Se algum barco respondesse estava em apuros, soçobrado nas escarpas afiadas que formavam a linha de costa, nos baixios traiçoeiramente calmos que as rodeavam. No passado isso era bom para os pescadores ali à volta, que agradeciam a oportunidade de acrescentar o rendimento com os objectos estranhos que vinham na rebentação, mas não agora. Os pescadores eram mais ricos que então, ricos demais e orgulhosos demais para se satisfazerem com qualquer quinquilharia que vinha com a maré, e os barcos que por ali passavam não traziam grandes tesouros, apenas o petróleo negro, que, se derramasse, trazia mais chatices que riquezas. Lá se ia a pouca faina e os turistas de verão com os seus bons dólares, com os seus bons euros.O homem caminhava sem destino, perdido nos seus pensamentos. Não reparava em mais que no passeio para não escorregar nele. Não se vê ninguém pensava, e ainda bem, pensava: não lhe apetecia conversas, nem tinha saído para socializar. Apreciava apenas o cheiro a maresia no ar e o nevoeiro espesso, apreciava as ondas de rebentação contra os molhes da marina e o farol de nevoeiro ao longe. Até o pescador encolhido nas suas galochas e os três ou quatro noctívagos que tinha encontrado antes lhe pesavam como testemunhas da sua dor privada, da sua excentricidade de caminhar pela marginal de madrugada, sem propósito algum que não o de pensar sossegadamente, e sozinho. Precisava de arranjar um cão, pensou. Assim ao menos tinha a desculpa do passeio e ninguém estranharia. As pessoas adultas precisam de álibis para fazer as coisas e não agir por impulso, ou pensam que perdeu o juízo e não é de confiar. Arranjaria um cão, decidiu.

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