terça-feira, maio 08, 2007



Memorizo-te pelo tacto, como uma cega, quando estás perto, e reconstruo as partes de ti quando estás longe através dos olhos e da memória. Só assim te guardo comigo, só assim estás em mim que não de uma forma menos vaga, mais concreta. Existes em mim como fumo quando te queria carne e sangue, quando te queria verdade concreta como as coisas que se vêm e se sentem e se tocam e se cheiram e se provam. Tomo de ti aquilo que posso, como uma cega, aquilo que me deixas.

segunda-feira, abril 30, 2007



Sinto a tua ausência como a náusea de um navio em alto mar: a mesma solidão imensa, a mesma impotência física contra o corpo que se revolta e chama e anseia pela terra firme debaixo dos pés e a casa onde se chegará mas que não se vê. Sinto a maré, a mesma maré implacável que não se consegue parar, nem evitar, nem fugir.
Sinto a tua ausência como uma náufraga, nada chega nem parte, só a imobilidade do silêncio e o amor, o amor que, improvável, resiste a tudo e me rodeia, como o grito das gaivotas e o sal.

sexta-feira, abril 20, 2007

Time Capsule



Enterro o meu coração numa caixa estangue. Aos que o encontrarem no futuro a mensagem: usado, quase novo.

segunda-feira, abril 16, 2007

Nós



William Holman Hunt , The lady of Shalott

"There she weaves by night and day
A magic web with colours gay.
She has heard a whisper say,
A curse is on her if she stay
To look down to Camelot. "
Alfred, Lord Tennyson

Teço e espero, teço e espero-te isolada na minha ilha. Se olhar, perderei tudo. Se te olhar, terás apenas um breve olhar de pena pelo meu gesto. E no entanto, és o fio de cor vermelha, dolorosa, que me alegra a teia dos dias. E no entanto, por ti rasgaria os fios que me prendem à realidade e partiria, para sempre.

domingo, abril 01, 2007

Febre



Amo-te assim como quem torce por uma equipa de futebol, sabes como é, não é definitivo, não vai morrer ninguém se perder o campeonato, vai só doer um bocado durante um tempo e depois acabou-se tudo, a vida continua e também a minha vida, também eu, até tudo passar e ficar só aquela marca mental da derrota. Não é como se a vida acabe, como se eu me encoste a um canto muito escuro e muito doloroso para chorar, a vida continua, alguém compreenderia esta minha derrota assim, como morte de homem, como uma coisa definitiva? Ah não, a vida continua, e haverá mais dias e mais sóis e estações e despedidas e eu continuarei assim, a viver, apesar da marca da derrota, apesar de ter perdido tudo,de te ter perdido e amar-te-ei como quem ama uma equipa de futebol, as cores correm fundo, como uma tribo, mas tenho de continuar viva, continuar funcional.
Como é possível a vida continuar, perguntam-se uns, como é possivel sem a nossa tribo, a nossa identidade? Tu, que és a minha tribo, um bocado de mim, tu que és as cores do meu coração mostras bem como é possível. Vivemos depois de ter perdido o campeonato e as cores com que nos vestimos estarem no chão esquecidas e pisadas, muito depois do grito de força e de vitória se desvanecer no ar deixando atrás de si apenas um ténue rasto de agonia, um levíssimo vestígio de desespero.
Vivemos muito depois do apito final como vivemos na esperança da época seguinte, do próximo momento e do golo que se segue, de alguém que venha e nos salve e nos resgate do sítio escuro e doloroso onde nos dobrámos para chorar a derrota, mais uma, sempre.

quinta-feira, março 22, 2007

Eros



Não, assim não te quero, não se não me quiseres como eu, com a pele em febre e os nervos em corda, não te quero através de portas e de muros e de dias.
Não quero que venhas se não vieres comigo, se não formos os dois até ao fundo desta febre, desta fonte, deste fundo.
Vai, não me toques. Não se o teu toque não for como é para mim, o amor feito fogo, estendido em raio de calor até ti.

terça-feira, janeiro 09, 2007

Antinoo




Nenhuma face será mais amada que a tua. Mesmo depois do adeus, desse longuissimo e definitivo adeus que te estarei dizendo sempre, serão os seus amados traços a encher-me de espanto e de tristeza, será a tua ausência a encher-me até não caber mais nada nem ninguém, o teu gesto fantasma a tocar-me ainda.

Amar-te-ei para sempre, mesmo para lá da vida, mesmo para lá do amor, mesmo quando a paixão não for mais que cinzas e depois nem isso, será o teu amado rosto ainda a povoar-me, como um talismã, a única divindade finita que adorarei jamais. Assim é o amor que nos marca, a carne viva, que nos deixa indeléveis os sinais, como aquele teu olhar primeiro num dia longínquo, como aquele teu rosto cheio de sombra, de olhos baixos, a ponto de me cegar. Nunca sobrevivemos ao amor, nunca.